giseli vasconcelos on Mon, 26 Jun 2006 16:51:49 +0200 (CEST)


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Assunto: PCC, Marcola e a realidade

  Entrevista com  Marcola do PCC.

  'Você é do PCC?"
  — Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu
  era pobre e invisível... vocês nunca me olharam
  durante décadas... E antigamente era mole resolver o
  problema da miséria... O diagnóstico era óbvio:
  migração rural, desnível de renda, poucas favelas,
  ralas periferias... A solução é que nunca vinha... Que
  fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma
  verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no
  morro ou nas músicas românticas sobre a "beleza dos
  morros ao amanhecer", essas coisas... Agora, estamos
  ricos com a multinacional do pó. E vocês estão
  morrendo de medo... Nós somos o início tardio de vossa consciência
  social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão...

  — Mas... a solução seria...

  — Solução? Não há mais solução, cara... A própria
  idéia de "solução" já é um erro. Já olhou o tamanho
  das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por
  cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria
  com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente,
  com um governante de alto nível, uma imensa vontade
  política, crescimento econômico, revolução na
  educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a
  batuta quase que de uma "tirania esclarecida", que
  pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que
  passasse por cima do Legislativo cúmplice (Ou você
  acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão
  roubar até o PCC...) e do Judiciário, que impede
  punições. Teria de haver uma reforma radical do
  processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre
  polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference
  calls entre
  presídios...) E tudo isso custaria bilhões de dólares
  e implicaria numa mudança psicossocial profunda na
  estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não
  há solução.

  — Você não têm medo de morrer?

  — Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui
  na cadeia vocês não podem entrar e me matar... mas eu
  posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos
  homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba...
  Estamos no centro do Insolúvel, mesmo... Vocês no bem
  e eu no mal e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira.

  Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos,
  diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama
  cristão numa cama, no ataque do coração... A morte
  para nós é o presunto diário, desovado numa vala...
  Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em
  "seja marginal, seja herói"? Pois é: chegamos, somos
  nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros
  do pó, né?

  Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio
  Dante... mas meus soldados todos são estranhas
  anomalias do desenvolvimento torto desse país. Não há
  mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma
  terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama,
  se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando
  nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas
  brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês
  não ouvem as gravações feitas "com autorização da
  Justiça"? Pois é. É outra língua. Estamos diante de
  uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera
  uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia,
  satélites, celulares, internet, armas modernas. É a
  merda com chips, com megabytes. Meus comandados são
  uma mutação da espécie social, são fungos de um grande
  erro sujo.

  — O que mudou nas periferias?

  — Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem
  US$40 milhões como o Beira-Mar não manda? Com 40
  milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a
  polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado?
  Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário
  vacila, é despedido e jogado no "microondas"... ha,
  ha... Vocês são o Estado quebrado, dominado por
  incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão.
  Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em
  terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não
  tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem
  armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no
  ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de
  humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos
  transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês
  de palhaços. Nós somos ajudados pela população das
  favelas, por medo ou por amor. Vocês são odiados.
  Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e
  produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos
  de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem
  assim que passa o surto de violência.

  — Mas o que devemos fazer?

  — Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões
  do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do
  Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O
  Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos
  recrutas... O país está quebrado, sustentando um Estado morto a juros de
  20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos públicos, empregando 40 mil
  picaretas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o
  Klausewitz, "Sobre a guerra". Não há perspectiva de êxito... Nós somos
  formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem até
  foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí... Pra
  acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas... Aliás, a
  gente acaba arranjando também "umazinha", daquelas bombas sujas mesmo...
  Já pensou? Ipanema radioativa?

  --- Mas... não haveria solução?

  — Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem
  de defender a "normalidade". Não há mais normalidade
  alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da
  própria incompetência. Mas vou ser franco... na boa...
  na moral... Estamos todos no centro do Insolúvel. Só
  que nós vivemos dele e vocês... não têm saída. Só a
  merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui,
  mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não
  entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o
  divino Dante: "Lasciate ogna speranza voi che
  entrate!" Percam todas as esperanças. Estamos todos no
  inferno.

  Jornal: O GLOBO


Autor:

  Editoria: Segundo Caderno


Tamanho: 1010 palavras

  Edição: 1


Página: 8

  Coluna: Arnaldo Jabor


Seção:

  Caderno: Segundo Caderno





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