ricardorosas on Mon, 23 Sep 2002 07:18:05 +0200 (CEST) |
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[nettime-lat] Inversão de Posições - Antropofagia como tática de descolonização |
Inversão de posições: da antropofagia como estratégia de descolonização Ricardo Rosas “Nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”. Oswald de Andrade - Manifesto Antropofágico. Embora já tenha sido recuperada pela mídia como mais um produto no “supermercado cultural” da sociedade do Espetáculo, a Antropofagia continua a ter um vigor de subversão tão iconoclasta quanto atual. E isso porque, em que pesem as releituras que dela se fizeram, o fato é que o cerne da utopia antropofágica idealizada por Oswald de Andrade permanece desconhecido. É, pois não se engane: a Antropofagia não foi uma espécie de “futurismo” brasileiro (tinha mais aproximação com o surrealismo e o simultaneísmo cubista) muito embora seus ideais se voltassem para o futuro, para a utopia - nem se reduziu à mera deglutição da cultura estrangeira ou nacional como práxis artística. Além disso, os detalhes mais revolucionários tem ficado de fora das recentes abordagens da mídia por razões óbvias: porque incomodam. Pervertem os princípios burgueses/cristãos do politicamente correto pós-moderno, defendendo um libertarianismo sexual anarco-comunista e pagão, que ecoa a utopia orgiástica de Charles Fourier, a Revolução Sexual de Wilhelm Reich, as idéias de Marcuse e Raoul Vaneigem, ou a TAZ de Hakim Bey. A defesa do paganismo nativo contra a igreja colonizadora, o reconhecimento da sexualidade como força motriz da sociedade e possibilidade de libertação dos entraves sociais, a quebra de tabus, o renascer da magia, a tecnização do bárbaro, o fim do trabalho através do ócio criativo, o matriarcado contra o poder fálico, são todos fundamentos da utopia antropofágica que tem sido sutilmente esquecidos, talvez por não se enquadrarem nas cartilhas do pensamento politicamente correto da dita “pós-modernidade”. Esse silêncio estratégico - contra o qual a gritante exceção talvez seja o Teatro Oficina de Zé Celso, em face mesmo da atualidade das reinvidicações mais agudas da antropofagia - foi recentemente quebrado por obra de um filósofo espanhol, Eduardo Subirats, num livro que tem tudo para virar uma espécie de libelo para novas gerações de antropófagos. Tudo bem que a tese de A Penúltima Visão do Paraíso não seja pioneira nessa seara. Antes dela, teóricos como Benedito Nunes ou Haroldo de Campos já haviam desvelado aqueles aspectos básicos com suficiente clareza, e nesse sentido a introdução à Utopia Antropofágica, por Nunes, é fundamental, tanto quanto seu Oswald Canibal. Mas o grande achado de Subirats é justamente trazer o lado mais instigante e questionador da antropofagia para o atual debate em torno da “globalização”. Jogando lenha na fogueira acesa desde os protestos de Seattle, Subirats desloca o eixo desses recentes questionamentos para a periferia da aldeia global, ou seja, justamente para onde se encontram as maiores vítimas dessa globalização de mão única: o terceiro mundo. Ao colocar a Antropofagia no contexto internacional contemporâneo, Subirats lança novas e esclarecedoras luzes sobre ela. Se não, vejamos: Subirats primeiro analisa o Canibalismo surrealista à luz de Dali e Picabia e deixa clara a diferença entre o espírito agônico e atormentado da vanguarda européia e o otimismo iluminado e libertário da Antropofagia. Concorde-se ou não, para Subirats o canibalismo daliniano transformava a experiência artística numa estética de consumo de massas, perfazendo a transição da mitologia das massas fascistas para a engrenagem do Espetáculo (Guy Debord) pós-moderno. Toda a “iluminação profana” inicial da rebelião surrealista teria ressurgido, então, nas visões paradisíacas e orgiásticas da antropofagia oswaldiana. A nostalgia antropofágica pela “Idade de Ouro” lançava um novo olhar intelectual e artístico sobre o passado originário dos povos da América pré-descobrimento, permitindo que o diálogo com esse passado fosse uma fonte de criação artística e ponto de partida para uma revisão radical da modernidade. A incorporação dos legados indo e afro-americanos, a consciência da condição histórica pós-colonial com respeito às metrópoles do capitalismo industrial e pós- industrial, e a crítica do cristianismo seriam elementos distintivos desse novo olhar. Por outro lado, ao contrário da vanguarda européia, os antropófagos brasileiros descobriram na própria realidade histórica americana, nas línguas dos índios e nas expressões artísticas populares, o fermento capaz de criar o novo em termos formais, e ao mesmo tempo inspirador de uma utopia emancipadora. O novo, na verdade, era o velho. Como diz Subirats: “Paradoxalmente, o novo era o que estava dado, o que existia desde sempre, visto que o espírito libertário, a inovação sem fronteiras, a surrealidade e o mundo de sonhos já existiam na América muito antes da chegada dos europeus.”(1) Se o “Éden terrestre” já existia na América antes do descobrimento, foi por graças da colonização que o paraíso virou inferno. Ao dissecar os mecanismos culturais, teológicos e militares que fundamentaram a colonização depredatória da América Latina, Subirats não poupa munições pra deixar às claras como se fundamentou essa empreitada: por um lado, eliminavam-se conhecimentos, memórias coletivas, experiências históricas, seus símbolos e práticas sociais, e por outro, instauravam-se compulsiva e artificialmente representações, simulacros e sistemas de identidade vazios e fora de contexto (ou fora de lugar, como escreveu Roberto Schwartz). Esse processo não se encerrou com as independências na América Latina e perdura até os nossos dias. Isso fica patente na “modernidade” incompleta de nosso continente. A crise na Argentina é só mais um exemplo dentre vários. A falta de uma modernidade ilustrada - ou seja: nos moldes do iluminismo americano e europeu - nos coloca como bem o mostra Subirats, numa fronteira abismal com o primeiro mundo. Fronteira: limite, subúrbio simbólico e político, periferia. Território de tráficos legais e ilegais de mercadorias, seres humanos e símbolos, campo de culturas híbridas, marginais, de guerras informais, de intercâmbios linguísticos e mestiçagens culturais. Fronteira do Outro: do europeu, da modernidade, da teologia, do progresso. Fronteira essa criada “pelos discursos e armas da universalidade da redenção cristã, do universalismo do progresso tecno-científico e suas promessas de felicidade eletrônica na aldeia global.” (2) Subirats mostra claramente o modo como esse muro ideológico foi erguido pela empreitada colonizadora da Igreja e do Estado na América Latina. Desnuda igualmente a cumplicidade discursiva das idéias de progresso e conhecimento científico- técnico, cristalizados pelo iluminismo, na conivência para com o tráfico de escravos ou o genocídio dos povos ameríndios. É o rastro de destruição e extermínio perpetrados em nome de um progresso visto até hoje como àpice da civilização e da racionalidade. Faz-se necessário, então, “inverter esse círculo anti- hermenêutico, reconstruir os sistemas sacramentais de obstrução e destruição da memória no interior das epistemologias tecno-científicas modernas; pôr em evidência o princípio cristão de culpa e redenção na própria lógica da colonização financeira; revelar a cumplicidade política e epistemológica entre as formas industriais e as estratégias feudais de destruição e domínio sociais; esclarecer a função constituinte da violência colonial na configuração dos discursos do progresso; reconhecer a periferia como realidade marginalizada e miserável, para depois revelá-la como o maravilhoso centro do centro.”(3) Essa inversão de posições, revisando os discursos hegemônicos a partir de suas fronteiras epistemológicas e territoriais, a “abertura do centro a partir da periferia” se realizaria pela construção de um novo olhar, nem central, nem periférico, que pusesse em evidência o caráter de limite da realidade americana “no centro mesmo da definição exemplar da Cristandade, do Progresso, da Modernidade, da Globalidade.” (4) O que o Movimento Antropofágico faz é transformar essa dialética de submissões e discursos subalternos, subvertendo a hermenêutica missionária, pois debocha dessa teologia da dívida e do sacrifício sacramental, devorando-a, eliminando- a. No lugar dela, a comunhão orgiástica do existente, a harmonia erótica do ser, a criação infinita. “Os antropófagos modernos devoram os mitos da modernidade e da pós-modernidade para transfigurá-los num projeto humanizado de conhecimento e poder tecnológico.” (5) Para Subirats, só a Antropofagia subverteu a dialética de ruptura com o passado, e despertou as vozes remotas enclausuradas pelo Logos colonizador. Já dizia o manifesto: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.” Desnudando a palavra, emancipando-a de sua servidão logocêntrica e cristã, ela devolvia a palavra ao último paraíso. Se, em nossa atual sociedade do info-espetáculo e da miséria da vida cotidiana, ela também sucumbiu aos rituais canibalescos do autoconsumo mercantilista (a “recuperação” no sentido dado pelos situacionistas), aquele sonho do Éden acabou se transformando em promesse de bonheur, em mémoria poética. “E como sempre se sucede nos mitos e contos orais do Amazonas, esses sonhos, esses protestos e essas poéticas se metamorfosearam em estrelas e se encontram no firmamento.” (6) Notas: 1. Subirats, Eduardo. A penúltima visão do paraíso, Studio Nobel, São Paulo, 2001, p.158. 2. Idem, p.135. 3. Idem, pp. 133-134. 4. Idem, p. 138. 5. Idem, pp.139-140. 6. Idem, p.101. --- UOL Eleições 2002 - Todos os lances da disputa política http://eleicoes.uol.com.br/ _______________________________________________ Nettime-lat mailing list [email protected] http://amsterdam.nettime.org/cgi-bin/mailman/listinfo/nettime-lat