Almandrade on Sat, 5 Oct 2002 20:27:02 +0200 (CEST)


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[nettime-lat] arte contemporânea













A  IRREALIDADE  DA  ARTE  CONTEMPORÂNEA

"A crise não afeta apenas  a arte contemporânea, a produção de novas obras
de arte: se a arte não continuar, tudo aquilo que resta da arte do passado e
que constitui ainda hoje uma parte notável do ambiente material da vida,
perderá todo o valor e acabará por ser abandonado e destruído."


(Giulio Carlo Argan)


Todo trabalho cultural requer um mínimo de compromisso com uma determinada
forma ou sistema de saber. O objeto artístico é resultado de uma pesquisa
especializada para interrogar a própria natureza da arte. É inútil o
trabalho do olhar debruçado na incerteza de uma definição de arte, perdido
na impossibilidade de uma verdade definitiva. Estranha, a obra de arte é
aquilo que é reconhecido como manifestação de um saber. Uma aventura
imprevisível, um jogo sem fim, com regras sendo inventadas a todo momento,
sem ganhador nem perdedor. A arte está sempre nos propondo mais problemas
que soluções. Uma relação de tensão e desconfiança passou a reger a arte
contemporânea, pela sua condição de ser provocativa e recusar a contemplação
passiva.

Com a modernidade e suas vanguardas, principalmente Marcel Duchamp, a arte
passou a ser qualquer coisa deslocada para o circuito da arte. Um
objeto/lugar de um pensamento ou de uma idéia, independente do verniz
textual e da autorização de um curador. O artista era um pensador, tinha uma
atitude crítica. A produção do belo era a transformação de uma matéria prima
em produto simbólico, segundo a razão e a sensibilidade de um artista que
dominava um saber, porque a arte não era um acidente diante da razão. Nos
anos 70 no império da arte conceitual, fazer qualquer coisa arte era dominar
uma teoria, se posicionar de forma consciente no universo da arte, da
sociedade e da cultura de uma maneira geral.

O processo de inventar o objeto estético se deteriorou com a facilidade e a
rotina de um fazer mecânico que se repete sem o hábito da reflexão. Duchamp,
quando inventou o readymade tinha consciência da armadilha da facilidade:
"Logo percebi o perigo de repetir indiscriminadamente esta forma de
expressão e decidi limitar a produção de 'readymades' a uns poucos por ano."
O tempo da arte parece condenado com o descrédito dos paradigmas que
norteiam a arte contemporânea. O artista precisa conhecer o seu ofício, é
indispensável ter referências, na arte acadêmica o artista dominava um
conhecimento que era o artesanato, a técnica, o saber das mãos. As chamadas
novas linguagens e os novos suportes utilizados sem a precisão do
raciocínio, são inovações duvidosas, muitas vezes, aquém dos suportes
tradicionais. Num cômodo deslize, um estilo fácil dominou a
contemporaneidade, como se a arte fosse um clichê, uma moda, ou um evento
para o entretenimento de um público.

A obra de arte passou a ser secundária. E quem decide é o curador, o
marchand, o cronista social ou o produtor cultural. A hegemonia do mercado
foi acompanhada do aparecimento do curador em lugar do crítico, do produtor
cultural e depois as leis de incentivo a cultura. O objeto deslocado do
contexto de origem, por determinação de um artista, é sustentado pela
"teoria" imaginária de um curador. Dessa forma a arte enquanto produto de um
conhecimento específico deixa de existir. Por outro lado, esse suporte
teórico é incapaz de fazer uma leitura crítica desse sucateado trabalho de
arte e situá-lo no seu devido lugar cultural.

Um fluxo de produtos artísticos descontrolado, deixa de ser uma surpresa. A
imagem da arte não é  um fragmento do mundo sensível destinado a ornamentar
uma experiência mundana; mas um esquema de ordenamento do espaço plástico, a
partir de um modelo abstrato de pensamento. Essa qualquer coisa chamada
arte, que se utiliza de fáceis e limitados procedimentos, faz da arte
contemporânea um estilo simulador de complexidades, cada vez mais
incentivada pelos salões, pelo mercado e pela crítica inventada pela
indústria cultural.

A arte contemporânea, recalcada nos anos 70, ficou na moda, faz parte do
cotidiano dos atuais salões de arte. O belo é, para os novos especialistas
da arte, a negação do pensamento, uma brincadeira da sociedade do
espetáculo. A arte foi confinada a um campo restrito de experimentação, que
tem como referência a tradição da facilidade. Os salões estão de cara nova,
mas continuam com o mesmo modelo de seleção e premiação, o mesmo processo
burocrático de outros tempos, que reforça a idéia de cultura como uma
superstição, e não algo real.

No momento em que a diluição e a facilidade são as regras do fazer
artístico, a reflexão cessa, a arte deixa de ser saber e passa a ser
acessório de um lazer cultural. A ausência de estilo converteu-se num estilo
inculto e inseriu o contemporâneo na periferia da cultura, protegida  pela
publicidade do olhar do espetáculo.




Almandrade
Artista plástico, poeta e arquiteto


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