Rodrigo Gurgel on Fri, 7 Feb 2003 17:10:02 +0100 (CET) |
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[nettime-lat] Como desbalcanizar a América Latina? |
Como desbalcanizar a América Latina? Rodrigo Gurgel www.rodrigo.gurgel.nom.br Em meu artigo anterior, chamei a atenção para o isolamento cultural que o Brasil vive em relação à América Latina, salientando as possibilidades surgidas no horizonte da política externa que começa a ser redesenhada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez estejamos vivendo um novo período histórico, no qual teremos perdido, definitivamente, a timidez amedrontada que sempre nos subjugou, transformando-nos - no que se refere à nossa relação com os EUA - em enteados que, conhecendo a prepotência do padrasto, calam-se antes mesmo da reprimenda. E é possível - e desejável - que as primeiras medidas afirmativas, voltadas aos países da América Latina, reflitam-se em uma política internacional que lute para colocar um fim à "balcanização" do nosso continente. Já em 1924, o peruano José Carlos Mariátegui alertava para o fato de que a América espanhola encontrava-se "fracionada, cindida, balcanizada"; qualificativos que permanecem, infelizmente, atuais, podendo ser aplicados a um conjunto mais amplo, no qual o Brasil deve ser incluído. São países, dizia Mariátegui, que "não se necessitam, não se complementam, não se buscam uns aos outros", mas "funcionam economicamente como colônias da indústria e das finanças européia e norte-americana." Para Mariátegui, a causa do fracionamento latino-americano seria "a insignificância dos vínculos econômicos", advertindo que "entre nações incompletamente formadas, entre nações apenas esboçadas em sua maioria", havia a impossibilidade de se articular "um sistema ou um conglomerado internacional". Passado quase um século, os problemas continuam os mesmos. Nossas relações continuam frágeis, destituídas de um projeto, deixadas ao sabor das conjunturas. E, separadamente, cada um dos países latino-americanos ainda busca sua identidade e tenta livrar-se das sucessivas crises políticas, libertar-se do jugo do capital internacional e superar suas gravíssimas desigualdades sociais. À história e à realidade atual de cada uma dessas nações aplica-se a sentença do dominicano Pedro Henríquez Ureña: "Em cada geração se renovam, desde há cem anos, o descontentamento e a promessa." Tais são as balizas que têm norteado a vida da América Latina. E se esses limites criaram as condições para importantes rupturas, também serviram, em muitos casos, a uma certa padronização das crises, que se repetem infindavelmente, condenando-nos a uma perigosa gangorra, na qual "descontentamento" e "promessa" revezam-se de maneira estéril, sem produzir os frutos que poderiam promover o bem-estar e a cidadania, mas estagnando as nações no lodo onde vicejam o desamparo, a fome e as demais faces da pobreza. Há, contudo, uma fissura nesse jogo perverso: a cultura. Através dela, cada povo pode descobrir sua originalidade e sua riqueza atemporal; acordar para suas tradições e raízes e retirar delas a energia e o impulso para solucionar seus problemas; elevar-se à sua verdadeira condição, de produtor de belezas únicas, recuperando seu orgulho e descobrindo-se capaz de traçar uma nova rota para sua história. Por meio da cultura, podemos, inclusive, transpor nossas fronteiras. Ou melhor: superá-las; encontrar o que nos une, o que nos irmana. E descobrir, entre os elementos que nos diferenciam, os tesouros que, partilhados, podem nos tornar melhores. Hoje, mais do que em qualquer outro momento, como resposta à lógica da cultura midiática e de massa que serve apenas aos ditames do mercado, devemos buscar o que Ureña chamava de "nossa magna pátria". Ele nos comparava, então, aos povos "politicamente desagregados, mas espiritualmente unidos, da Grécia clássica e da Itália do Renascimento", alertando-nos, contudo, que deveríamos aprender com eles, "com seu exemplo, que a desunião é o desastre" . O Brasil tem as condições, agora, de encabeçar esse movimento, abrindo caminho a uma era de revitalização de nossas relações diplomáticas e culturais, um período no qual, concedendo às nossas fronteiras a função de meros limites geográficos, possamos conhecer, mutuamente, nossas tradições, recuperar a memória de nossas lutas, avançar para muito além daquela cultura que é somente um produto de mercado e um objeto de marketing e construir, juntos, o início de uma nova ordem social, onde - para finalizar com Ureña - o "desaparecimento das tiranias econômicas combine-se com a perfeita liberdade do homem individual e social" . _______________________________________________ Nettime-lat mailing list [email protected] http://amsterdam.nettime.org/cgi-bin/mailman/listinfo/nettime-lat